O que foi o Proálcool?
Omaior avanço tecnológico da história da indústria automobilística nacional nasceu por causa de uma adversidade: a crise mundial do petróleo. Em 1973, a Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) reduziu a produção da commodity, o que resultou em escassez de oferta e, como consequência, a abrupta elevação nos preços. A cotação do barril saltou de uma média de US$ 1,9 dólar em 1972 para US$ 11,2 em 1974, gerando uma inédita situação que passou a ser conhecida como o primeiro choque do petróleo.
A resposta brasileira veio no dia 14 de novembro de 1975, com a criação do Programa Nacional do Álcool, o Proálcool, uma iniciativa conjunta dos fabricantes de automóveis, governo e acadêmicos, resultando no que mais tarde viria a ser considerado o maior programa dedicado ao incentivo de biocombustíveis renováveis do mundo, baseado na cana-de-açúcar, cultura que era explorada no País desde o século XVI.
Postos com bombas de álcool ainda eram pouco frequentes quando do lançamento do Fiat 147 em 1979, primeiro carro a álcool do mundo
O Presidente da República, João Figueiredo, examina um caminhão Dodge D 900 em frente ao Palácio do Planalto, no dia 23 de novembro de 1979. Na solenidade, várias associadas da ANFAVEA apresentaram automóveis, caminhões e tratores a álcool, além de assinarem um protocolo relativo à produção de veículos com esse tipo de combustível
Primeira fase
Mesmo antes da instituição formal do Proálcool, já havia no Brasil experiências embrionárias sobre a utilização de álcool como combustível veicular, uma etapa iniciada no começo dos anos 70, e que viria a ser conhecida como a primeira fase do Proálcool.
Naquela época, as oficinas de reparo e de retífica de motores, que já possuíam permissão para converter veículos para uso de combustível vegetal, receberam autorização do governo para também usar o álcool em veículos, mas ainda com pouca base técnica. Esse processo consistia basicamente em alterar o avanço da ignição, substituição de velas, troca de giclês (para aumentar a vazão de combustível) e da bateria, por uma de maior capacidade.
Em pouco tempo, ficou claro que esse não era o melhor caminho a seguir, pois esse processo, quase artesanal, criava problemas técnicos, além de deixar de aproveitar todo o potencial que o combustível derivado da cana-de-açúcar poderia oferecer. Era o caso, por exemplo, da taxa de compressão do motor, que projetada originalmente para funcionar com gasolina, permanecia inalterada. Como lembra o engenheiro Henry Joseph Jr., Diretor Técnico da ANFAVEA, nem mesmo a especificação do álcool estava definida. Nessa fase, houve até tentativas de utilização de metanol como combustível.
As experiências de mistura do combustível renovável à gasolina variavam muito: começou em 10%, posteriormente subiu para 17%, caiu para 12% e voltou a subir para 20%. Tudo isso em pouco tempo, sem as pesquisas e testes adequados. Joseph Jr. recorda que os problemas foram grandes, entre os quais a corrosão de materiais em contato com o novo combustível, vazamentos, dificuldade de partida a frio e formação de goma no carburador. Algumas dificuldades foram solucionadas, como as falhas da partida a frio, com a introdução de um tanque auxiliar de gasolina e o rebaixamento do cabeçote, para aumento da taxa de compressão.
Mas os sérios problemas de corrosão persistiam. O álcool atacava peças de alumínio e zamac presentes no carburador. Em contato com o cobre, formava uma espécie de “pilha eletroquímica”, como define Henry Joseph Jr. Além disso, os anéis de náilon utilizados para vedação inchavam em contato com o etanol, se rompendo e causando vazamentos. Os tanques de combustível, que na época eram metálicos, também não resistiam ao combustível.
No dia 19 de setembro de 1979 as empresas associadas à ANFAVEA assinaram um protocolo de adesão ao programa Proálcool, que havia sido lançado em 1975. No mesmo dia, a entidade publicou em órgãos de imprensa um manifesto em defesa dessa nova alternativa energética tipicamente brasileira
Solenidade de comemoração do milionésimo carro a álcool, no Palácio do Planalto, reuniu várias autoridades e executivos da indústria no dia 19 de setembro de 1983. Na foto, o grupo desce a rampa do Palácio do Planalto, tendo ao centro o Presidente da ANFAVEA André Beer, ao lado do Presidente da República João Figueiredo
Segunda fase
A segunda fase do Proálcool, iniciada a partir de 1977, é tida como o período de maior expansão da engenharia automotiva brasileira, e foi marcada por um grande envolvimento de atores como fabricantes, fornecedores de autopeças, governo e universidades. Por meio da então Secretaria de Tecnologia Industrial (STI), que era um órgão do Ministério da Indústria e Comércio, o governo passou a se preocupar mais com o assunto, da mesma forma como a Petrobras.
A ANFAVEA aderiu formalmente ao Proálcool em setembro de 1979, dando um impulso ao programa. “O carro a álcool passou a ser um produto viável quando a nossas montadoras entraram com sua engenharia, fazendo um minucioso trabalho de pesquisa e desenvolvimento para corrigir todos os problemas da fase anterior e entregar um produto adequado para o consumidor “, explicou Henry Joseph Jr.
Esse período foi marcado por amplas discussões, realização de congressos e simpósios técnicos. Como resultado, esse processo possibilitou o desenvolvimento de veículos, tecnologias e materiais específicos para uso de etanol. Um exemplo foi a padronização do combustível, com a definição do teor de água. Até então, havia três tipos de álcool, utilizados sem muito critério técnico: o farmacêutico, o de limpeza e o empregado na indústria alimentícia. Das discussões, ficou estabelecido que o álcool da indústria farmacêutica seria o padrão, pois era o que tinha teor de água mais controlado.
Também se padronizou a variação do teor de álcool na gasolina, com a inclusão do limite mínimo, já que antes havia apenas a definição do máximo. Surgiram então os lubrificantes com formulação específica para motores a álcool, que demandavam aditivos próprios. Esse grande movimento não ficou restrito às montadoras. Houve grandes avanços na cadeia de fornecedores e nas universidades, que passaram a oferecer cursos de engenharia voltados à mecânica automotiva.
Um dos frutos desse movimento foi o surgimento, em 1984, da AEA (Associação Brasileira de Engenharia Automotiva). Seu embrião nasceu em um simpósio de engenharia automotiva promovido pelo governo em 1982, para o qual foram convidadas as montadoras. O objetivo era discutir questões ligadas ao álcool. Os resultados foram considerados tão satisfatórios que um novo evento foi marcado para 1984. No intervalo entre os dois simpósios, discutiu-se a necessidade de o Brasil ter uma associação nos moldes da SAE (Society of Automobile Engineers), existente nos EUA, que congregasse os engenheiros ligados ao setor automotivo. Conta-se que o governo militar não teria aprovado a criação de uma entidade com nome inglês. Foi aí que surgiu a Associação Brasileira de Engenharia Automotiva.
Proálcool foi fundamental para redução de emissões
Além de representar a diminuição da dependência do petróleo importado e economizar divisas, o Proálcool teve também papel fundamental no controle de emissões. O uso do combustível renovável reduziu de forma significativa a emissão de monóxido de carbono na atmosfera, tanto em motores 100% a etanol como em propulsores que utilizavam gasolina contendo alguma porcentagem de etanol na mistura.
O combustível vegetal também substituiu com vantagem o chumbo tetraetila, componente que era usado na gasolina com a função de elevar a octanagem e evitar a pré-ignição do motor. Isso deveu-se ao fato de que o chumbo impossibilitava a utilização de catalisador (item que seria adotado a partir da década de 90), sob pena de danos ao equipamento.
Linha de montagem do Fiat 147 em Betim (MG), em 1979, com adesivo comemorativo no alto do para-brisa de cada unidade, referente ao lançamento do primeiro carro a álcool do mundo
Motor flexfuel: novo salto tecnológico
Em 2003 os olhos do mundo se voltaram mais uma vez para o Brasil quando nossa indústria deu outro salto tecnológico e introduziu a tecnologia flexfuel. Com motores aptos a funcionar com gasolina e etanol em qualquer proporção de mistura, a indústria ganhou em escala de produção e o consumidor passou a contar com liberdade de escolha no momento de abastecer.
Agora o motorista não ficava mais sujeito às variações de preço do etanol causadas pela sazonalidade da plantação, especialmente no período da entressafra, e tampouco corria o risco de escassez de gasolina motivada por conflitos internacionais.
A tecnologia rapidamente se expandiu. Em função do forte aumento de demanda, e para aumentar a produtividade, houve drástica redução nas queimadas no campo, técnica que era utilizada para facilitar a colheita, mas que resultava em poluição do ar, sujeira gerada pela fuligem e doenças respiratórias. A prática foi substituída pela rápida mecanização na colheita da cana-de-açúcar, que possibilitou aumento da área plantada.
Dos 68 milhões de toneladas de cana colhidos na safra de 1975/76, época da criação do Proálcool, houve um salto para 652 milhões de toneladas em 2013/14. Já a evolução da produção do etanol foi muito maior: de 550 milhões de litros produzidos em meados dos anos 70 para 28 bilhões de litros em 2015, quando o Proálcool completou 40 anos.
Estima-se que atualmente a área ocupada pela cana-de-açúcar ocupe 9 milhões de hectares, o que equivale a 1% do território nacional. O plantio destinado exclusivamente à produção de etanol ocupa 0,6% do território do País.
Em 2005, apenas dois anos após a estreia do primeiro carro flexfluel, a tecnologia já estava presente em 80% dos veículos leves vendidos no País. De 2003 até 2021, cerca de 37 milhões de automóveis e picapes deixaram a linha de produção aptos a receber os dois combustíveis, o que representa quase a totalidade das vendas.
Em 2003 a Volkswagen apresentou o Gol Total Flex, primeiro modelo do Brasil e do mundo que poderia utilizar a mistura de etanol e gasolina em qualquer proporção no tanque. Hoje essa tecnologia é absolutamente predominante na frota brasileira