História

Adhemar Ferreira da Silva. Conhece?  É o único brasileiro bicampeão olímpico consecutivo em uma modalidade individual, o salto triplo. Fez fama mundial nos anos 50 ao saltar mais de 16 metros – o que alguns, então, diziam ser humanamente impossível.

Adhemar deixou o mundo boquiaberto ao conquistar sua segunda medalha de ouro seguida quebrando o recorde do salto triplo naquela que foi a primeira olimpíada realizada no hemisfério sul, a de Melbourne, na Austrália. Foi em 1956.

É curioso, mas a indústria automotiva brasileira e Adhemar têm muito em comum. A começar pelo ano: naquele mesmo 1956 nascia a ANFAVEA, a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores. Mas as afinidades vão muito além de uma coincidência de calendário.

As medalhas e recordes de Adhemar não vieram à toa ou por sorte. Ele venceu a inexperiência e todo tipo de adversidade com muito treino e estudo. A indústria automotiva brasileira também não nasceu por milagre ou a partir de um simples grupo de assinaturas em um pedaço de papel. O esforço foi tremendo e hercúleo.

Na época do primeiro ouro do atleta, 1952 em Helsinque, na Finlândia, o Brasil simplesmente não produzia veículos. Eram todos 100% importados. Algumas empresas, como Ford e General Motors, apenas montavam aqui alguns modelos, trazendo do exterior praticamente todas as peças – o índice de nacionalização em peso (como se media então) era baixíssimo, de menos de 20%.

O país estava estagnado, e uma das razões era a imensa carência por transporte, tanto de pessoas quanto de carga, seja por via rodoviária, ferroviária ou fluvial. Vivia-se uma espécie de dilema: não havia desenvolvimento econômico por falta de transportes e não havia transportes por falta de desenvolvimento econômico. O atraso era gritante.

Para tentar combater esse quadro, algumas iniciativas pioneiras foram muito importantes, como a criação da Companhia Siderúrgica Nacional, a CSN, e da Fábrica Nacional de Motores, FNM, que montava os caminhões logo batizados de “FêNêMê”, além da fundação da Associação Profissional da Indústria de Peças para Automóveis e Similares, mais tarde Sindipeças, em 1951, e da Associação Profissional dos Fabricantes de Tratores, Caminhões, Automóveis e Veículos Similares, depois Sinfavea, em 1955.

Mas não pense que a introdução da indústria automotiva no Brasil era uma unanimidade. Longe disso. Uma forte corrente colocava todo tipo de barreira: diziam que o Brasil era um país essencialmente agrícola e que assim deveria permanecer, exportando matérias primas e importando bens manufaturados. Também se argumentava que nosso minério de ferro era ruim, que não era possível fundir um bloco de motor em um país de clima tropical como o nosso.

Mas os pioneiros da indústria não deram ouvidos a esse derrotismo. Impulsionada por medidas dos presidentes Getúlio Vargas e Juscelino Kubitscheck, a indústria brasileira de veículos surgiu formalmente em 16 de junho daquele 1956, um mês depois da ANFAVEA, com a criação do Grupo Executivo da Indústria Automobilística, ou apenas GEIA, que instituiu uma legislação que possibilitava a industrialização automotiva.

O resultado foi impressionante: em menos de uma década, o Brasil saltava de 250 fábricas de autopeças e três montadoras para 1.200 empresas fabricantes de autopeças e onze fabricantes de veículos, em 1960. O índice de nacionalização de peças em peso, naquele ano, evoluiu para incríveis 90% para caminhões e 95% para jipes e automóveis.

Os críticos, porém, não aceitavam esse avanço e chegaram a dizer que a indústria automotiva nacional era uma “farsa”. Buscavam de tudo: primeiro alegaram que benefícios e estímulos dados pelo governo causaram prejuízo. Porém, as isenções alfandegárias e de imposto concedidas não afetaram o caixa federal porque nem se contava com esses valores no orçamento, já que ainda não havia a indústria e, sem ela, igualmente esses recursos jamais existiriam. Além disso o GEIA exigiu em contrapartida sérias e rígidas obrigações, com prazos e volumes de produção pré-estabelecidos que foram cumpridos à risca pelas empresas.

Depois diziam que não haveria tantos compradores para os veículos aqui fabricados (“O plano foi ambicioso demais”, afirmaram). Mais tarde, alegavam que a qualidade dos produtos nacionais era duvidosa. Passaram então a afirmar que os produtos importados eram mais baratos do que os nacionais, que pagavam mais de 50% de imposto. Chegaram até a dizer que a indústria automotiva era responsável pelo aumento da inflação, pois pagava melhores salários e utilizava muita matéria-prima local.

O clima político era tenso e o país estava dividido. A jovem indústria automotiva brasileira precisava mostrar que era séria e que chegara ao Brasil não como aventureira, mas sim como propulsora do desenvolvimento. E comprovou seu valor: em 1964 já alcançava a quase inacreditável marca de 1 milhão de veículos nacionais produzidos, deixando os céticos boquiabertos.

Finalmente consolidada, a indústria não parou mais de crescer. Em 1966 o Brasil já era o décimo-segundo maior produtor mundial de veículos, e o porcentual dos modelos nacionais na frota total ultrapassava 60%. Quebramos a barreira do meio milhão de veículos produzidos por ano em 1971 e de um milhão apenas sete anos depois, em 1978. Comprovando a qualidade dos carros produzidos no Brasil, nessa mesma época alcançamos volume acumulado de 500 mil veículos exportados.

O mundo vivia a crise do petróleo, que prejudicava gravemente nossa balança comercial e, portanto, a economia. A indústria nacional mais uma vez deu a resposta: em 1979 nasceu o carro a álcool, tecnologia exclusivamente nacional, prova da capacidade técnica de nossa engenharia e de sua inventividade.

O retorno foi imediato. Em 1983 os automóveis a álcool, ou a etanol, já eram 99,5% do total vendido. E chegamos a 1989 registrando produção acumulada de 20 milhões de veículos nacionais.

A década de 1990 chegou trazendo avanços tecnológicos como celulares e internet, além da reabertura dos portos brasileiros aos produtos importados. Um senso de modernidade se fez urgente e, em parceria com trabalhadores, fabricantes de autopeças, concessionárias, governos e órgãos da sociedade, nasceram os chamados acordos setoriais automotivos de 1992, 1993 e 1995, que, entre outros, deram origem ao carro popular, fundamental para elevar os números de mercado e a produção.

Na virada do milênio, a capacidade da indústria nacional dava mais um exemplo sólido ao mundo. Surgia a tecnologia flex fuel, que já equipou mais de 30 milhões de veículos nacionais até hoje. Com ela, os veículos poderiam funcionar com qualquer combinação de etanol e gasolina.

Em 2012 foi instituído o Inovar-Auto, primeiro regime automotivo nacional, com prazo de duração de cinco anos. Os veículos nacionais se tornaram mais modernos, econômicos e seguros, além de menos poluentes.

De seu nascimento em 1956 até os dias atuais, a indústria automotiva brasileira alcançou números grandiosos. Já foram fabricados aqui mais de 80 milhões de veículos, sendo 17 milhões exportados para mais de uma centena de países, além de quase 3 milhões de máquinas agrícolas. São mais de 60 fábricas e cerca de 1,3 milhão de pessoas com empregos ligados à indústria automotiva. Temos mais de 5 mil concessionárias espalhadas pelo Brasil. Somos o nono maior produtor e o sétimo maior mercado interno do mundo. São dados de causar inveja a praticamente todos os países do globo.

Nesta década, a indústria automobilística está mergulhada em grandes transformações na forma de utilização e produção de veículos. É uma nova e fundamental fase para o setor automotivo no Brasil, que já conta como base para isso com o Rota 2030, um programa estratégico de desenvolvimento e busca por novos saltos tecnológicos via pesquisa e desenvolvimento gerados aqui, no Brasil, por engenheiros e pesquisadores brasileiros.

A trágica pandemia da Covid-19 intensificou os desafios que já estavam postos sobre a mesa, não só para os fabricantes, mas para todo o ecossistema automotivo, como o foco na reindustrialização, na descarbonização e na redução do Custo Brasil, de forma a permitir que nossos produtos acessem o importante mercado global com maior competitividade.

O pós-pandemia trouxe sequelas como a crise dos semicondutores, levando todos os países a repensarem a cadeia global de fornecimento. O Brasil tem o desafio de aproveitar as oportunidades oferecidas a um país de dimensões continentais, rico em insumos para produção de semicondutores, de baterias para veículos elétricos e outras tecnologias de ponta. A produção local desses equipamentos é a chave para a manutenção de uma indústria forte, como tem sido desde a metade do século passado, quando a ANFAVEA nasceu, juntamente com a indústria automobilística nacional.

No dia 30 de dezembro de 2023 foi publicada a MP 1.205, que instituiu o programa MOVER – Mobilidade Verde e Inovação, uma evolução do Rota 2030. Entre seus principais objetivos estão: garantir previsibilidade e segurança aos investimentos; alinhamento entre governo, academia, fabricantes e fornecedores; regulamentação do incremento da eficiência energética e da segurança veicular; indução aos investimentos em P&D (dos fabricantes, fornecedores, academia e startups); estímulo a novas tecnologias com foco ambiental; promoção dos biocombustíveis e de novas formas de propulsão; valorização da matriz energética brasileira de baixo carbono; capacitação técnica e qualificação profissional.

Entre as inovações do programa, destacam-se o princípio da reciclabilidade do veículo e o conceito do “poço à roda”, em lugar do tradicional “tanque à roda”. Ou seja, não basta medir as emissões dos veículos apenas pelo escapamento, mas sim levando-se em conta a pegada de carbono gerada na produção e disponibilização do combustível ou da energia que movimenta o veículo.

Fotos: Acervo Miau